gole #96: quando você precisa largar a bagagem e ir
São muitas memórias. É impossível sair ileso.
Oi queridos, tudo bem?
Pega seu café, que hoje eu quero a sua companhia para chorar.
Meu pai nasceu em São João Da Boa Vista, uma cidadezinha que faz divisa com Minas Gerais e é considerada como uma das cidades que oferece mais qualidade de vida para população idosa do país. Na época, entre andanças pra lá e pra cá, meu pai jovem foi trabalhar em Catanduva, conheceu minha mãe, se mudaram pra Araçatuba e o resto é história.
Pois no último fim de semana fizemos um encontro de família em São João Da Boa Vista. A região é realmente muito especial, localizada na Serra da Mantiqueira, com possibilidade de fazer um bate e volta em várias cidades de Minas Gerais e também de visitar vinícolas premiadas, como a Guaspari (que tem um dos melhores vinhos deste mundão).
_ Pai, você voltaria a morar em São João Da Boa Vista?
- Não.
Foto do nosso encontro em família na região de São João Da Boa Vista. Da esquerda pra direita, minha irmã mais velha Larissa, minha tia atrás (irmã do meu pai), minha mãe, meu cutuco sobrinho, eu, meu pai e atrás dele minha irmã do meio, Natali, e meu cunhado, o Caio.
A resposta dele não significa que ele não tenha carinho pela cidade em que foi criado.
Mas é que cidades natais trazem um peso tão grande que, ou você carrega esse peso a sua vida inteira, ou você larga essa bagagem e vai viver a sua vida.
Meu pai saiu de casa muito cedo, com 11 anos. Imagina uma criança sair da casa dos seus pais com 11 anos pra estudar num colégio agrícola em outra cidade, em Espírito Santo do Pinhal. Até hoje meu pai tem as cartas que enviava para meus avós no tempo desse internato, eram cartas tão profundas e tristes que é impossível lê-las nos dias de hoje. Lembra? Ou você carrega a bagagem ou você vive.
Na vida adulta ele voltou a morar em São João Da Boa Vista por um curto período. E construiu histórias em esquinas, ruas, bares, casas de amigos e na casa dos meus avós. Nesse nosso último encontro de família, passamos em frente ao barbeiro que ele costumava cortar o cabelo. O dono do salão, que cortava o cabelo do meu pai, já faleceu, mas encontramos lá o filho dele, que ainda corta cabelos e preserva a memória do seu pai, mantendo o salão exatamente como era na década de 50.
Tem lembrança mais especial que essa? Encontrar a barbearia que você cortava o cabelo e ver que ela continua igual.
Salão Modelo atendendo desde 1950 com a mesma cadeira de barbeiro. Na foto, meu pai com o filho do barbeiro que cortava o cabelo dele na juventude. Fiquei feliz que mantiveram a história do lugar. São João Da Boa Vista não demoliu toda sua história e a transformou em prédios, como aconteceu com São Paulo.
O fato é que meu pai e minha tia eram em 3 irmãos. Todos criados pelos meus avós em São João Da Boa Vista. Marcos (meu pai), Regina (minha tia) e Paulo (meu tio). Pois meu tio, aos 40 anos de idade, morreu num acidente de carro. Foi uma tragédia na época. Eu não costumava ver meu pai chorar antes desse episódio. Lembro que, na época, eu disse a ele tentando confortá-lo: _ pai, os acontecimentos ruins desta vida nos fazem mais fortes. E ele respondeu_eu não acho, filha. Acho que eles nos tornam mais fracos.
Perder um irmão é uma tragédia pra vida toda. Você não supera, você só larga a bagagem e vai viver a sua vida.
Pai e mãe são como pássaros que voam mesmo com a asa quebrada. Passaram por todas as dificuldades emocionais, financeiras e catástrofes dessa vida e ainda conseguiram construir uma família com 3 filhas, um neto, ter uma casa própria, um rancho, saúde mental na medida do possível, construir uma empresa e hoje, aos 70 anos, ainda terem energia para viverem e levarem eu minhas irmãs pra frente.
Esse encontro em família em São João Da Boa Vista foi muito especial pra gente.
Nos hospedamos num hotelzinho tradicional da cidade, tomamos café juntos proseando desimportâncias, resgatando memórias, agradecendo por esse mundo me dar tanta oportunidade pra eu ver meus pais, mesmo depois que vim morar em São Paulo.
Aliás, nunca perdoei o vestibular por ter tirado meus pais de mim.
Aos 17 anos, quando passei no vestibular de jornalismo tive uma crise de choro que, na hora, meus pais não entenderam. Mas eu sabia, no meu coração, que aquela era uma despedida eterna. Eu nunca mais ouviria minha mãe chegar da padaria com pão de queijo quente.
La vida.
Ela te afasta de quem você mais ama e diz: _vá para São Paulo aprender a ser adulta e passe uma vida inteira tentando encontrar pessoas que te dêem o mesmo conforto emocional que te davam os seus pais.
Eu construí a minha história, tá tudo certo. Mas eles são as únicas pessoas com que eu consigo ficar perto em silêncio. Parece que com todo o resto do mundo eu tenho que estar sempre puxando assunto.
Vocês não cansam de ter sempre que puxar assunto?
Às vezes, na frente ao computador, eu penso se deveria largar tudo e ir viajar com meus pais até ficarem bem velhinhos.
Acompanhar o envelhecimento deles está entre as piores coisas da vida. Me sinto numa Olimpíada em que eu, com 37 anos, tô envelhecendo mas aí percebo que meus pais, que estão lá na frente, estão envelhecendo mais, então eu corro um pouco mais rápido para tentar alcançá-los, mas os cabelos deles serão sempre mais brancos que os meus e as peles dos braços vão sempre se enrugar mais rápido que as minhas.
Um computador não deveria merecer tanto a minha atenção.
Um dia a gente ainda vai se arrepender de ter dedicado tanto tempo respondendo e-mails.
Meu pai olhando a vista da serra, numa cidadezinha pequenina perto de São João Da Boa Vista, chamada Caldas/MG.
Eu entendo meu pai quando ele visita sua cidade natal, se emociona com as memórias mas diz não querer voltar a morar lá.
Se um dia me perguntarem:
_ Clara, você voltaria a morar em Araçatuba?
- Não.
É muita bagagem para lidar.
E eu preciso seguir.
Obrigada por me acompanharem até aqui.
Tem música ao final desse gole.
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Para acompanhar seu gole
A música que eu ouvi para escrever essa newsletter foi esta versão belíssima de Casinha Branca, cantada por Maria Bethânia. Só clicarem abaixo para serem levados pro Spotify e ouvirem a versão completa.
Fiquem bem.
Um beijo,
Volto logo.
Clara Vanali.
Que texto lindo!
Se a gente não deixa a bagagem, ficamos presos na memória. A vida é esse eterno seguir até chegar sabe-se lá aonde. 🌻
Para mim, morar longe dá uma pintura as memórias e transforma coisas em mais bonitas e leves do que realmente eram. Às vezes vou visitar e volto exausta, infelizmente não é um encontro sempre de prosa fácil. Ir para lá é também lembrar bagagens duras, uma certa estagnação da qual não gostaria de viver. Ao mesmo tempo, acompanhar envelhecimentos de longe é dificílimo. Enfim… a equação não é perfeita, então deixar a bagagem e seguir faz bastante sentido mesmo.