gole #115: eu quis querer o que o vento não leva
A certeza de que nada dura para sempre, pra ninguém.
Oi queridos,

Às vezes fico pensando se, depois de certa idade, não nos tornamos mais a lembrança do que já fomos do que, de fato, o que somos hoje.
Fui assistir ao musical dos Paralamas do Sucesso, em cartaz no Teatro Frei Caneca, em curtíssima temporada em São Paulo, até o fim de maio apenas. Abri o jornal no sábado, vi uma reportagem sobre a peça e resolvi comprar. Valeu muito a pena. A gente só se lembra da beleza que é ir ao teatro quando vê tudo acontecendo diante dos nossos olhos, sem cortes, sem disfarces, apenas o talento dos atores nos transportando pelas histórias enquanto trocam de figurino, cenário, fazendo meses de ensaio parecerem fáceis.
Para você que mora em São Paulo e acompanhou, ao longo da vida, um pouco da discografia e da genialidade desse grupo: apenas vá. Fui sem saber que veria não só a história da banda, mas também a minha própria.
Me lembrei de quando era criança, na casa da minha avó em Catanduva, e ouvia o CD Nove Luas, imaginando que, quando eu crescesse, teria a melhor vida que pudesse sonhar — e que aqueles dias brincando com as minhas irmãs eram só uma espera até, finalmente, a vida começar.
Pois mal sabia que, aqueles dias de infância, dando risada com meus avós e indo tomar sorvete depois, seriam a melhor época das nossas vidas. A minha vida já era aquela. Eu só não sabia.
Na minha adolescência, eu também não sabia que deveria ter prestado mais atenção quando Herbert Vianna cantava Saber amar é saber deixar alguém te amar - e não acreditar que eu deveria buscar incessantemente alguém para preencher algo que eu mesmo inventei fazer falta. Eu deveria apenas ter deixado algumas pessoas entrarem, sem me questionar se ficariam para a eternidade. Só precisava permitir que me amassem, pra então amá-las também, e entender que o amor é algo que se constrói nos dias e na convivência.
Me lembrei também da época em que me mudei pra São Paulo, em 2005, e morava num quartinho com a minha irmã Natali, dentro de um pensionato na Alameda Itu. Eu era muito nova, tinha muitas saudades de casa e dos meus amigos em Araçatuba. Mas uma coisa que me reconfortava era chegar à noite, após a faculdade, e assistir à novela A Lua Me Disse, estrelada pelo até então desconhecido Wagner Moura. Uma época simples, sem muito dinheiro, em que a nossa alegria era, depois de um dia cheio, ligar a televisão do quarto e esperar até tocar a música tema do casal da novela: Por que não eu?
Todas as noites, jantávamos na cozinha comunitária do pensionato com outras tantas meninas, que também tinham deixado suas cidades no interior para tentar ser alguém na capital. A gente só não sabia que já éramos alguém ali, sentadas naquela mesa, jantando juntas. Eu nunca vou me esquecer das risadas daqueles jantares. E também das inseguranças daquele período. Dezenas de meninas unidas ali pela vontade de, um dia, se tornarem advogadas, jornalistas, médicas ou o que quer que o nosso esforço nos permitisse alcançar.
Como eu gostava muito dessa música, propus pro Eduardinho, amigo querido da faculdade, que juntássemos nossos violões e cantássemos Paralamas lá em casa, filmados pela Clarisse, outra amiga querida, que o tempo acabou afastando, mas com quem estarei sempre unida pelo carinho que temos uma pela outra.
Aliás, Eduardinho, desculpa divulgar esse vídeo de 16 anos atrás, mas é impossível falar de Paralamas e não lembrar de você — que tem uma história de vida e trabalho com a banda, é o maior conhecedor de tudo que remete a eles e de quem guardo as melhores lembranças das rodas de violão e música lá na sua casa. Naquele dia, na minha casa, você esqueceu seu pandeiro meia-lua, e eu nunca mais devolvi. Desculpa por isso. Que bom que temos esse registro:
A gente se reunia muito na casa do Edu pra tocar violão, falar besteira, organizar festas juninas, beber vinho e voltar tarde da noite pra casa. Anos depois, a República do Edu foi desfeita, ele mudou de país e, quando me recordo daquelas noites, lembro também que nada é para sempre.
A vida é feita daquilo que acontece naquele momento, e eu aproveitei muito.
Não me lembro de ter recusado algum convite feito pelo Edu. Eu batia ponto nos encontros musicais de todas as casas em que ele morou.
Um pouco antes dos anos de pandemia, durante um trajeto num táxi em São Paulo, começou a tocar uma música linda do Paralamas que eu nunca tinha ouvido (ou pelo menos não me lembrava de ter ouvido): Sempre te quis. Na hora, escrevi pro Edu perguntando por que eu nunca tinha escutado aquela música em apresentações da banda. Ele me respondeu que é uma das menos conhecidas do Herbert, mas igualmente linda, e ficou feliz por eu a estar ouvindo naquele momento.
Taí uma banda que sempre me surpreende.
Pois, voltando ao momento atual, maio de 2025, assisti ao musical e fiquei ali, revivendo cada época com saudade, sabendo que estive em todos aqueles lugares com o meu coração. E pensando em como é intensa a juventude, quando ninguém ainda tem a vida pronta e a vontade de estar próximo é tão forte: com os amigos, produzindo, criando, amando, sofrendo todas as etapas do amadurecer.
Chegar perto dos 40 nos torna mais reclusos, sempre cansados da semana de trabalho e preferindo ficar em casa lendo um livro a sair em busca de aventuras.
Crescer é isso?
Viver mais com a gente mesmo.
No musical, os atores representam os Paralamas tocando no Circo Voador e no Rock in Rio - quando estavam abraçando o mundo e acreditando que nada era impossível enquanto construíam, tijolo por tijolo, a própria história. A gente não percebe que colocar os tijolos pode ser mais divertido do que morar dentro da casa.
Em 2001, aconteceu o acidente com o Herbert, uma tragédia que tirou a vida de sua esposa e o deixou paraplégico. A peça mostra isso: que nada é para sempre. Ainda assim, a banda se uniu, e, depois de um tempo, Herbert voltou a tocar com o trio, provando que o que vivemos lá atrás pode ser tão poderoso que nos dá força para continuar sendo quem somos hoje. Mesmo com toda a dor que essa queda causou — não só no Herbert, mas também no João Barone e no Bi Ribeiro — eles continuaram.
Sobreviver é isso?
Continuar.
“Foi por te ver andando,
Reto entre tudo que há de incerto em mim”
(Sempre te quis, 1996)
Penso que, de uma forma ou de outra, precisamos constantemente buscar dentro de nós quem já fomos e também como nos sentíamos nas épocas em que a emoção estava à flor da pele - com tudo por acontecer. Porque o tempo e as pedradas acabam criando uma casca, uma armadura que, hoje, usamos para nos proteger do mundo, dos riscos e das pessoas que possam nos magoar.
Continuar é tirar a armadura para experimentar de novo.
O tempo não volta, as saudades são imensas, mas fizemos o nosso melhor: sentadas no chão da sala da casa dos meus avós; se arriscando em novas paixões não tão duradouras; jantando enquanto compartilhávamos sonhos na cozinha do pensionato; dividindo as taças de vinho na casa do Edu, com uma turma de faculdade que se unia pela vontade de compartilhar um sábado à noite.
Ainda sou tudo isso.
O tempo não parou para os Paralamas. Não os manteve numa zona segura e apenas crescente. E, exatamente por isso, eles me lembram que o tempo não para só porque eu quero. O que o tempo faz é me lembrar de quem já fui um dia para que, assim, eu possa continuar. A nossa casa já não é a mesma, as pessoas já não estão tão perto, mas a nossa história estará sempre aqui.
"Eu quis querer o que o vento não leva
Pra que o vento só levasse o que eu não quero
Eu quis amar o que o tempo não muda
Pra que quem eu amo não mudasse nunca
Eu quis prever o futuro, consertar o passado
Calculando os riscos
Bem devagar, ponderado
Perfeitamente equilibrado
Até que num dia qualquer
Eu vi que alguma coisa mudara
Trocaram os nomes das ruas
E as pessoas tinham outras caras
No céu havia nove luas
E nunca mais encontrei minha casa
No céu havia nove luas
E nunca mais eu encontrei minha casa"
(Um Pequeno Imprevisto, 1996)
Obrigada por me acompanharem até aqui.
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Fiquem bem.
Um beijo,
Volto logo.
Clara Vanali.
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Sobre os Dias é uma newsletter da jornalista e filmmaker Clara Vanali sobre os sentimentos e emoções dos dias. Aqui você vai ler sobre sensações, vinhos e goles compartilhados, sobre riscos e superações, sobre conversas e experiências que deixam memórias.
a gente é sempre uma soma de tudo o que já viveu. e é maravilhoso ver o quanto de coisa boa a gente tem para recordar!
Que relatos, Clara! Parece que as músicas da banda se tornaram uma cama de gato que saltou pelas mãos de todos que estiveram com você nesse passeio, da sorveteria de Araçatuba até Vital, o Musica, só pra amarrar sua história. E, continua, porque sempre vai ter bis. Sigamos tentando viver, já que "a arte é de viver da fé só não se sabe fé em quê".