gole #98: vem jantar comigo
Enquanto compartilho sentimentos sobre vida e morte em diálogos com a minha mãe.
Oi queridos, tudo bem?
Eu acho impressionante como é só sair da nossa casa, ir para um lugar bonito, sentar, pedir um vinho e um prato gostoso, e você já entra numa viagem. Talvez seja o poder que a arquitetura tem. Que um ambiente revestido por madeira e luz amarela baixa tem. Que o novo Arturito tem.
_ Eu acho que na vida a gente nasce com um propósito.
- Eu não acho.
_ Eu acho.
- Eu acho que a vida é um milagre e quando a gente morre o milagre acaba.
Minha mãe estava em São Paulo esses dias. Veio pra um tratamento médico que a gente achou que seria complexo mas que, ao se mostrar mais simples, nos animou a comemorar a notícia no restaurante da Paola Carosella, na rua Chabad. De acordo com minha mãe, depois dos 60 a gente tem que comemorar tudo. Está vivo e andando? Comemore. Está enxergando? Comemore. Consegue comer sozinho? Comemore. Tem um sofá gostoso pra ver tv à noite? Boa, celebre isso!
Isso vale para antes dos 60 também.
Pedimos um vinho de uma uva, que conheci recentemente, chamada Viognier (pronuncia-se vioniê) e senti o céu. Levinha, acidez tranquila, sem fru fru. Eu fico impressionada com a quantidade de uvas que existem, mas a gente acaba se acomodando nas únicas que os supermercados nos proporcionam: merlot, cabernet sauvignon, chardonnay, malbec.
Pois sentadinhas, com nosso Viognier em mãos, vivemos. E ficamos conversando de profundezas emocionais. Minha mãe comentou que um amigo do meu pai, que está na faixa dos seus 75 anos, decidiu não dar trabalho pros filhos no futuro. Por isso, já reservou o caixão e a cova onde será enterrado. E ele não está morrendo, não; está ótimo de saúde. Mas decidiu planejar a sua morte antes que planejem por ele.
Imagino ele comunicando a família:
"Filhos, vou ser velado neste caixão e enterrado nesta cova, deste exato cemitério. É só assinarem o papel e está tudo liberado.”
Maduro da parte dele. Organizou, pagou e segue vivendo com a tranquilidade de que não vai estressar ninguém na sua morte.
À mesa, minha mãe disse que acha que todos nascemos com um propósito. Eu respondi que acredito que somos um milagre e cabe a nós decidir o que fazer com esse milagre.
Falo em milagre, não como uma religiosa (e não teria problema se fosse uma). Mas como alguém que percebe que é só olhar pro lado para entender que isso aqui só pode ser um.
Vem comigo, que o jantar está só começando.
Entre óvulos e espermatozoides mil, nascemos. Com rins, estômago, intestino e um coração que bate até o dia em que você morrer. Um sangue vermelho que percorre nossas veias o dia inteiro e não cansa. Um corpo que emite dor quando tem algo errado com ele. E então eu olho para um jardim e vejo. Frutas que têm cores e sabores doces que vêm do mamão, banana, pêssego, pitaya. Uma borboleta azul. Caramba, azul? Um gato que passa embaixo da minha perna com aqueles olhos que parecem vidro brilhante. Água que cai do céu. Sol que esquenta a pele.
_Esse mundo é muito maravilhoso, mãe. Não acho que temos propósito, não. Acho que temos sorte de ser parte de um ecossistema poderoso e que, por fazermos parte dele, a gente vai criando enredos pra justificar. Porque na nossa incapacidade de entender como a natureza pode funcionar com tamanha maestria, a gente acaba tendo que se distrair com propósitos, tarefas, trabalho. Porque, do contrário, seria doloroso demais viver com a realidade de que somos apenas uma parte dela, que vai passar por esse mundo, se embebedar da sua beleza e morrer.
Pedimos um Allumette. Eu não conhecia. É uma massinha folhada crocante que traz uma camada fina de açúcar e limão, recheada de requeijão caseiro, tapenade de azeitonas verdes, queijo Tulha (que lembra caramelo e castanhas) e presunto feito na casa. Provei e senti um entardecer quentinho na boca. Com um gole do Viognier, pensei: que bom viver este momento.
Acho que algumas pessoas têm mais capacidade de criar propósito do que outras. Invejo o pessoal que tem a meta dos passos por dia, da proteína, do planejamento estratégico. De certa forma, a gente só consegue traçar propósitos se pensar mais lá pra frente (vou ter mais um filho agora para que meu primeiro filho tenha a companhia de um irmão no futuro, vou economizar dinheiro para minha aposentadoria, vou sair desse emprego e montar meu negócio porque, em breve, pode ser que eu seja demitida desta empresa). O propósito está sempre de olho no futuro.
Eu sempre vivi com muitos propósitos. Obrigada, Clara do passado, por ser planejadora e garantir meu atual estado confortável, com uma caminha boa pra dormir, um trabalho saudável e condições para jantar num restaurante bonito. E talvez a juventude sirva para isso, para a gente construir propósitos. E, depois que eles vão acontecendo, a gente se permite mais experienciar os dias, sem tanta busca e com mais paz no coração. Como se a natureza nos autorizasse: mocinha, pode desacelerar, curta mais a imensidão deste planeta.
Pedimos o Puttanesca. Massa feita na casa, molho de tomate fresco, mini alcaparrinhas delicadas e salgadinhas, alho, azeite, ervas e pimenta fresca.
Que mescla linda se faz de um molho de tomate com queijo ralado. O queijo bem fininho por cima, até ele se derreter completamente e envolver o tomate, transformando tudo em um creme doce e delicadamente ácido.
E eu adoro as conversas que embalam as finalizações dos jantares porque, a essa altura, o vinho já cumpriu o seu papel de acessar as camadas profundas das emoções, e permite que todo mundo fale sem filtros e formalidades.
Eu não acredito que nascemos com um propósito, mas acredito que os inventamos pra podermos seguir. Eu já inventei muitos e sigo inventando. Hoje, com menos rigidez, menos cobrança. Mais no intuito de cuidar da minha saúde e da minha família. Com um olhar gentil para os caminhos escolhidos, me perdoando pelos propósitos não concretizados e agradecendo a tudo que venci até aqui. Agradeça você também. Por vivermos num universo tão generoso que, além de nos dar essa vida, ainda nos permite sonhar:
_pode brincar à vontade, desenhe teus objetivos e propósitos, vamos te acompanhar até você parar.
E obrigada a vocês por me acompanharem até aqui. Sei que tenho muitos leitores que não pensam igual a mim (e nem devem) mas veem esse espaço como um lugar aberto para dialogarmos e escutarmos uns aos outros. Obrigada por isso também.
Tem música ao final desse gole.
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Para acompanhar seu gole
Sorria menininho,
Ria e eu choro porque o menino sorri sem mim.
Sorria na noite,
E aviva os olhos castanhos mais lindos que vi.
Sopre os matos,
Suba a montanha, amanhã talvez descerá.
Se faz dia o sol deslumbra,
Os ventos descansam e o menino se amansa.
Fiquem bem.
Um beijo,
Volto logo.
Clara Vanali.
uma boa companhia, uma boa comida e um bom vinho. taí um dos maiores prazeres da vida!
Que reflexão preciosa!