gole #91: quando foi que você parou de rezar?
É no meio das tragédias que a gente perde a fé e a ressignifica também.
Oi queridos, tudo bem?
Minha mãe, desde que eu me lembro por gente, sempre separava as quartas-feiras à noite pra rezar. Mas não era qualquer reza. Era a reza pra família toda. Ela rezava por todos nós.
A gente já sabia que aquele era o seu momento. Ela ia pro quintal, abria a bíblia, acendia meia dúzia de velas, cortava rosas brancas, sentava e conversava com Deus. Era bonito de ver. Eu sempre quis saber rezar assim.
Esses dias, no entanto, minha irmã mais velha vem e me diz: você sabia que a mãe parou de rezar?
_parou de rezar? quando?
Morando em São Paulo e não estando mais na mesma casa que a minha mãe, eu perdi esse momento.
_pois quando foi que ela parou de acender velas no quintal?
_quando ela percebeu que o pé dela não ia ter mais cura.
Fiquei pensando se todos nós não temos um momento chave na vida em que paramos de rezar.
Minha mãe desenvolveu uma artrose no pé em consequência de uma fratura no tornozelo que aconteceu quando ela tinha 20 e poucos anos. Aos 50 anos a calcificação do osso virou uma artrose. Ela sempre rezava. Aos 60 ela operou. E seguiu rezando. Aos 61 operou de novo. Rezando. Aos 62 ouviu dos médicos que não tinha mais o que fazer, ela teria que conviver com a dor pra sempre.
E então ela nunca mais foi pro quintal rezar.
Eu me lembro quando foi que eu parei de rezar.
Foi quando eu vi uma notícia na TV sobre uma família que foi assaltada quando estava dentro do carro, no trânsito. Os ladrões mandaram a família sair, mas os pais não conseguiram desprender o filho pequeno da cadeirinha, que ficou meio pra fora, meio pra dentro. E então os assaltantes começaram a ficar sem paciência e aceleraram o carro com a criança desse jeito. E assim seguiram por quilômetros, arrastando a criança que morreu com a cabeça no asfalto, e com os pais assistindo a pior cena que poderia existir.
Eu não consigo imaginar a dor de uma mãe e de um pai vendo aquilo.
Mas eu senti. E parei de rezar.
Acho fácil pensar em Deus quando acontece um monte de coisas boas na minha vida. Na minha vida. Mas é só olhar por lado. Tem uma desgraceira acontecendo com um monte de gente.
Você já questionou sua fé olhando pra vida de outras pessoas e não pra sua?
Já aconteceram mil milagres no meu caminho, não tenho nem dedos pra contar. Mas e se uma criança do meu lado morre arrastada no asfalto, cadê o milagre na vida dela?
Fiquei meio atordoada com os mais de 500 mil que estão desabrigados no Rio Grande do Sul. 500 mil que perderam sua cama, casa, memórias. Elas ainda tem fé?
Elas estão vivas e isso é o mais importante mas….lá no fundo, será que não rola uma desesperança generalizada?
(conversas com minha mãe no whats app)
E as vítimas dessas mesmas enchentes que morreram sufocadas, afogadas, presas na lama enquanto estavam dormindo? Elas certamente tinha fé de que 2024 seria um ano bom e de que coisas maravilhosas aconteceriam nas suas vidas.
Eu não tô aqui questionando religiões, nem qual Deus existe para cada pessoa. Eu só tô colocando em palavras um monte de coisa que passa na minha cabeça quando situações horrorosas acontecem.
Pois, no último sábado, fui gravar um grupo de médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais que embarcaram voluntariamente num voo para Canoas/RS sem data pra voltar, e com o propósito de ajudarem os desabrigados nas enchentes. Eu passei 2 horas com esses voluntários conversando até o caminho do aeroporto. Todos eles tinham experiência e se dedicavam a trabalhar em desastres: Iraque, Haiti, Brumadinho, pandemia…Todas as situações em que seres humanos se veem desamparados, eles estavam lá. E eu ali, sentadinha no ônibus indo pro aeroporto de Viracopos, com minha câmera no colo, fiquei ouvindo cada um deles se apresentar e dizer o porquê estavam indo pra lá.
Meu coração, que estava vazio naquele momento, se encheu. Acho que esse é um efeito que pessoas boas causam na gente, sabe? Elas tinham um sorriso, um brilho, uma missão…que só podia ser fé. O combustível desses voluntários era ajudar pessoas. E acho que, de tanto ajudarem, se preencheram de luz. Fiquei me sentindo confortável ali no meio, como se aquele círculo de boas intenções tivesse me abraçado também e me fizessem segura.
Fiquei pensando que talvez esse seja o jeito que algumas pessoas têm de rezar. Elas se juntam, se enchem de generosidade e vão ajudar pessoas.
Minha mãe não parou de rezar. Ela só reza agora de um jeito diferente. Mais no coração, menos no quintal. Mais nos dias com a gente e na maneira com que cuida das plantas e se comunica com a natureza. No carinho como cozinha e sempre inventa um almoço diferente. No afeto que tem em nos ouvir e na alegria que compartilha em viver.
E eu, mesmo rebelde, só não parei de rezar completamente por causa dela. Porque ela me convence que o nosso amor e atenção pelos os que estão precisando mais do que nós, segue sendo nosso horizonte diário para seguir com fé.
Que o Rio Grande do Sul se encha de esperança com o carinho e entrega dos voluntários e que, um dia, quando tudo isso passar, eles tenham vontade de rezar novamente.
Obrigada por me acompanhem até aqui.
Todos os goles passados, antes do 87, estão disponíveis para leitura lá: claravanali.com.br
Os mais recentes estão aqui: claravanali.substack.com
Já falei de fé também no gole 18.
E tem um vídeo absurdo de lindo - que me tocou muito - e separei pra vocês assistirem nesta terça. Logo aqui embaixo deste texto.
Fiquem bem.
Um beijo,
Volto logo.
Clara Vanali.
Para acompanhar seu gole
Matthew McConaughey é sem defeitos. E aqui ele ganha. São 3 minutos que vão pegar vocês de emoção. Amor em família é isso. Juntos nos melhores e piores momentos.
Ah e a trilha, a atuação. O menino crescendo. O pai envelhecendo. E ao mesmo tempo se comportando como jovem demais. O filho também crescendo e ainda assim sendo sempre uma criança aos olhos do pai. Só assistam.
Você pode me escrever sobre o que achou desta edição por e-mail ou deixar seu comentário abaixo :)
Se gostou deste texto, que tal compartilhá-lo com os amigos?