gole #106: a grandeza dos rituais e das saudades
Entre flores de plástico e recordações.
Oi queridos,
O que seria da nossa vida não fossem os rituais?
Se a gente vivesse com dureza, sem propósito, sem nos doarmos por uma causa, por um sonho, pela nossa família?
Qual a graça dos nossos dias não fossem as crenças? As rezas? Os dedos cruzados?
O incentivo, a companhia, o estar junto?
Minha mãe, há 14 anos, perto da data de Finados, vai até o cemitério de Santa Adélia, onde nossos avós estão enterrados, para deixar o túmulo deles bonito para o próximo ano. Eu nunca fui. Sempre achei difícil visitar lembranças. Mas minha mãe diz que minha avó fazia isso com os antepassados dela quando era viva, pois gostava de deixar os túmulos bonitos. Fazer isso pela minha avó é uma forma de minha mãe continuar se conectando com ela e manter a tradição.
Lembrei do livro da Tatiana Levy em que ela fala:
Quanto resta de uma pessoa morta em nós?
Quanto de nós uma pessoa morta leva?
Este ano, eu decidi ir. Santa Adélia é do lado de Catanduva, onde passei muitos momentos felizes da minha infância. E eu sabia que minha mãe, após a visita ao cemitério, daria uma passadinha em Catanduva. Tava aí a chance de, após tantos anos, eu pisar de novo na praça em que eu aprendi a andar de bicicleta.
No cemitério, não são permitidas flores de verdade, apenas de plástico, para evitar a proliferação de insetos e dengue. E essa foi a primeira vez que simpatizei com as flores de plástico. Elas são preteridas, eu sei, mas, ali, naquele contexto, achei bonito o que elas representam. Elas carregam um significado. E às vezes, um significado é mais importante do que o objeto em si. Minha mãe comprou flores vermelhas lindas que, de verdade ou não, estavam cheias de saudade.
Tem uma senhora que minha mãe paga para limpar mensalmente o túmulo da minha avó. Encontramos ela naquele dia, e ela nos contou que ela e as irmãs cuidam de 150 túmulos. É o trabalho delas. Não é à toa que o cemitério de Santa Adélia é um dos mais bonitos que já vi. É permitido achar um cemitério bonito? Ao entrar, ele parece um parque muito grande e aberto, com árvores formando um corredor e flores coloridas balançando sobre os túmulos. Para aquela senhora, cemitério não é um lugar de tristeza, é o lugar onde ela faz o trabalho dela e sustenta a família.

Eu demorei um pouco para conseguir empurrar meu choro para debaixo dos óculos de sol. As lágrimas não estavam cabendo ali dentro e ficavam escorrendo. Que ódio. Chorei porque me vi revivendo o enterro da minha avó 14 anos atrás. Impressionante como a nossa cabecinha é boa em gravar memórias difíceis. Por outro lado, fiquei em paz por estar ao lado da minha mãe neste momento. É o seu ritual e é importante que, ao menos uma vez, eu esteja com ela.
De que serve uma família se não for para colocar flores não apenas em vasos mas também em túmulos?
Saímos de lá e seguimos para Catanduva. Meu pai parou o carro na praça da nossa infância. E eu, lá no banco de trás, seguindo com meu trabalho de empurrar as lágrimas para debaixo dos óculos, sem sucesso. Falei para ele que ia a uma lojinha ali da frente comprar Zona Azul para que pudéssemos deixar o carro parado ali. Entrando na lojinha, o moço me diz: _aqui eu não vendo Zona Azul, moça; quem vende é o comércio ali da esquina.
O comércio da esquina era a antiga sorveteria da minha avó. Só podia ser um sinal, para quem acredita em sinais. Eu nunca acredito, mas sempre acredito. Esse era o motivo de que eu precisava para entrar naquele lugar de novo. Cheguei aos prantos na sorveteria, que agora é uma lanchonete. Parei em frente e tirei uma foto. Havia um senhor na calçada que ficou me olhando, pensando: _o que essa garota vai fazer com a foto dessa lanchonete?
_vou ficar tentando lembrar qual era a cor da tinta das paredes quando o lugar se chamava Sorveteria Central.
Percebi que o mosaico português do piso da calçada ainda era o mesmo dos meus 10 anos. O que significa que estar pisando ali significava estar pisando onde todos nós já pisamos um dia: minha avó, meu avô, meu pai, minha mãe, minhas irmãs, com um sorvete de casquinha na mão, vendo o movimento da praça da frente, enfeitada para o Natal.
Entrei e pedi a Zona Azul para a dona da lanchonete, olhando ao redor de todas as paredes para ver se ainda restava alguma teia de aranha ou um pedaço da cor da tinta que era antes, só para eu sofrer um pouco mais. Saí da lanchonete e, ao lado, era onde ficava a casa da minha avó. A janela gigante em que a gente gritava quando chegava lá de Araçatuba e avisava: _vó, chegamos! ainda estava lá. A casa hoje é ocupada pela dona da lanchonete, que criou uma cozinha lá dentro, então, certamente, por dentro, a casa está bem descaracterizada. Mas a janela, intacta, me olhou surpresa com minha visita: _faz tempo, hein, menina?
A praça estava diferente. Modernizaram. Odeio quando modernizam nosso passado. Pelo menos, dentro da igreja, tudo estava igual àquela época. E essa é uma das poucas coisas que eu ainda gosto da Igreja Católica: eles não mexem na estrutura interna das igrejas; os bancos de madeira eram os mesmos que frequentávamos nas missas, o altar era o mesmo, o cheiro era o mesmo. Tirei uma foto, mas as lágrimas dentro dos óculos me atrapalharam e a foto saiu toda embaçada. Licença poética. Aproveitem as fotos embaçadas porque a inteligência artificial, logo mais, jamais deixará uma foto ficar embaçada.
Saímos da igreja e fomos visitar uma prima da minha mãe, a Célia. Enquanto minha mãe esperava ela atender à porta, reparei no piso da varanda. Que coisa preciosa eram os pisos de antigamente. Hoje, é tudo porcelanato sem graça: cinza, bege, branco. Vendo aquele piso, fiquei pensando em como é urgente não destruir as casinhas daquelas décadas, com suas varandas perfeitas cheias de encontros, sem portões automáticos, com portões baixinhos que acolhiam famílias conversando no fim da tarde.
As nossas histórias serão demolidas junto com os azulejos quando tudo virar prédio?

Catanduva em si está muito diferente do que eu me lembrava. As cidades, na verdade, não estão nem aí para sua infância, nostalgia ou o que quer que você queira chamar. Novos prédios vão sendo construídos, os bancos das praças substituídos e as ruas são atualizadas para combinarem com o futuro.
_eu tive que seguir, você que lide com seu passado.
Eu sei. A memória e o momento só existem dentro da gente. Mas estamos sempre buscando o que nos levou a chegar até aqui. Eu não cheguei aqui sozinha. Não foi apenas pelas minhas próprias pernas. Foi porque, um dia, meu pai passou na frente da casa da minha avó e avistou minha mãe. Resolveu chamá-la para sair. Então, se apaixonaram e casaram na igreja da praça. Decidiram ir para Araçatuba construir uma família lá. Nos criaram numa vida de muito esforço e alegria em Araçatuba, onde fizemos amigos, nos desenvolvemos e aproveitamos todas as férias para ficar com meus avós em Catanduva, onde andávamos de bicicleta na praça e tomávamos sorvete no comércio deles. É uma roda, entende? É um ciclo de escolhas e amor imenso que permite que hoje eu esteja aqui escrevendo este texto. Então, ter ido para Catanduva nesse dia me fez entender por que minha mãe sempre vai para lá, mesmo meus avós não estando mais vivos. Aquela foi a cidade dela, da infância dela, dos seus primeiros amores e de ver sua mãe e seu pai curtindo, e muito, com as netas.
A nossa cidade natal tem poder.
E estamos neste mundo para quê, se não for para nos emocionar com esses rituais que nos lembram os caminhos que nos trouxeram até aqui? De pisarmos na calçada onde já estivemos um dia? De entrarmos em prédios que já abrigaram os melhores momentos da nossa vida?
Eu sigo em frente. Mas compreendo muito a importância e grandeza de revisitar a nossa história. Ela nos coloca num lugar de respeito a tudo e todos que vieram antes de nós.
Saudades vó, obrigada mãe.
E obrigada a você por me acompanhar até aqui.
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Para acompanhar seu gole
A música de hoje é absurdamente linda. Não deixem isso passar. Compartilho porque fiquei com vontade de revisitar um vídeo que gravei com Bruna Caram e Paulo Novaes, em que eles cantam uma música do Paulinho que tem muito a ver com o que falei no texto. Olhar para a nossa esfera, para quem nos ama e nos fez chegar até aqui:
Tente permitir, que cada novo ato de amor
floresça e espalhe gratidão, por nossa esfera.
Tente se ouvir, sentir a própria pele arrepiar
chorar se for preciso, aliviar.
Fiquem bem.
Um beijo,
Volto logo.
Clara Vanali.
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Sobre os Dias é uma newsletter da jornalista e filmmaker Clara Vanali sobre os sentimentos e emoções dos dias. Aqui você vai ler sobre sensações, vinhos e goles compartilhados, sobre riscos e superações, sobre conversas e experiências que deixam memórias.
"as flores de plástico, não morrem" assim como nossas lembranças, difíceis ou não, algumas insistem em nos lembrar de onde viemos. Adorei o texto. 😍
Texto lindo! Me emocionei aqui.